Warburg e a proposta de uma história da arte como arte.

Apresentado no Colóquio de Artes. Campinas, 2008. Publicado nos Anais.

Warburg e a proposta de uma história da arte como arte.

Se eu recordo a viagem da minha vida, parece que minha missão é a de funcionar como um sismógrafo da alma na linha de divisão entre as culturas. Warburg (1927), In Michaud, 1998[1].

O trabalho do historiador de arte, Aby Warburg que, a pesar de ser considerado por muitos autores contemporâneos como Didi-Hbermann, “uma revolução discreta, solitária e profunda” permaneceu durante um longo período esquecido ou não reconhecido no campo da historiografia da arte. O capítulo primeiro tratará disso: “Warburg: do esquecimento à ‘sobrevivência’”.

A que se deverá esse recalcamento do verdadeiro pai da Iconologia, como hoje é conhecido Warburg, e a que se deverá a revalorização dele a partir dos anos 80-90?  Uma pista nos é dada por Didi-Hubermann, quando afirma que Warburg tinha sido objeto de um repúdio devido a algum excesso que cometera.

Uma atualização crítica do trabalho de um historiador e crítico da arte e também artista como Warburg, implica ver em quê seus trabalhos transcenderam sua época, isto é, permanecem vivos, ainda hoje. Diz Kosuth:

Essa atualização pode estar sendo feita por outros artistas,  na obra deles mesmos, como coloca Kosuth[2], ou pelo crítico em discurso, atingindo seus próprios contemporâneos: Uma arte ‘vive’ ao influenciar novos trabalhos e não por existir como resíduo físico das idéias de um artista. A razão por que diferentes artistas do passado são ‘revividos’ é que algum aspecto do seu trabalho se torna ‘utilizável’ por artistas vivos. Parece pouco sabido que não há ‘verdade’ quanto ao que seja arte. Kosuth, 1975[3].

Segundo Benjamin, a crítica se diferencia do simples comentário, pois, enquanto o comentário se ocupa do que a obra transmite da vida passada, a crítica – filosófica – mostra como essa obra transcende tanto aquela vida, quanto à de seus contemporâneos. Neste sentido, a obra de arte seria “atemporal”  pois, desde cada época, são lhe concedidos novos sentidos[4]. Benjamin cria o conceito de “ruína” para mostrar como uma obra pode ser usufruída tanto pelo leigo mesmo sem ir além, na análise da mesma, quanto por aquele que trabalha com a crítica e tem a possibilidade de analisá-la ad infinitum. Os elementos que permitiriam realizar leituras diferentes das concebidas pelo autor, segundo Valéry, são justamente os aspectos não-comunicativos da obra – retóricos –  “que operam em parte como fórmula mágica”[5]. O ensaio crítico de Friedrich Schlegel sobre Wilhelm Meister de Goethe foi, segundo Rosen, a primeira tentativa de outorgar ao trabalho crítico um estatuto de obra de arte[6], no sentido de estar prestando novos sentidos à obra.

Nos dois casos apresentados estará sendo feita uma crítica que implicará em um olhar diferente daquele do artista. Há ainda uma terceira possibilidade que é a que nos recorda Ronaldo Brito: a cada momento a obra de arte se nos apresentará com novos sentidos, e nossa função como historiadores da arte e críticos é permitir que essas significações fluam dentro de nós, ora mais voltada para a sensibilidade, ora mais voltada para o inteligível. No entanto, cada vez estaremos aumentando nossa experiência de vida, abrindo novos caminhos de significação, criando uma trama mais densa, tornando algo como um dispositivo que nos permita perceber formas desde outros pontos de vista e com novas significações na qual antes não podíamos enxergar[7].

Uma atualização crítica implica refletir o quê  e para quem está vivo o trabalho do artista.

Vínhamos de estudar o trabalho de Warburg com a Cecília Cotrim em seu curso “Aventura e deriva na arte contemporânea”, curso este no qual acompanhamos os pontos de interseção da arte contemporânea com o ideário romântico e ainda com o conceito de crítica de arte romântico.

Por outro lado, no curso de Luiz Costa Lima acompanhamos  criticamente, o que poderia ser entendido como história, nos dias de hoje. O curso focalizou a problemática questão do reingresso da retórica à historiografia contemporânea. Esta questão será desenvolvida no capítulo II: “A retórica na historiografia no século XX”.

O curso de Ronaldo Brito, “Picasso e Duchamp, dois pólos do contemporâneo”, trouxe a tona uma discussão entre a arte visual, “retiniana”, para a qual criam-se categorias de análise,  descritivas, de um lado,  e a arte conceitual, que exige uma análise hermenêutica, do outro.

No meio deste percurso, lembramos de um trabalho realizado para Fernando Cocchiarale em 2003 em que fazíamos a análise de um texto crítico de Damisch sobre o fato de os semiólogos terem reduzido, a seu ver, a arte a uma linguagem similar à Língua.  Estas questões irão ser discutidas no capítulo III: “As idas e voltas da retórica no campo da arte e da história da arte”.

No ponto 1 do capítulo III: “Crise, crítica e retórica” abordaremos a questão da crise da crítica, causada pela tecnologia e a aceleração do mundo contemporâneo, que permite o reingresso da retórica tanto no campo da arte quanto da historiografia, questão essa que vinha sendo esquecida desde os primórdios da Arte Moderna com o Impressionismo.

No ponto 2 do capítulo III: “Duchamp: antecedentes”  tentaremos contextualizar a obra de Duchamp, mostrando principalmente, o interesse nos jogos de palavras, no humor, e nos deslocamentos, daqueles que foram seus antecessores.

No ponto 3 do capítulo II: “’O processo criativo’ de Duchamp”, mostraremos as operações lógicas realizadas por Duchamp, e seus efeitos estéticos.

No ponto 4 do capítulo III: “O debate em torno de Duchamp”  trataremos do debate que estudiosos, artistas e críticos estabelecem em torno do trabalho de Duchamp.

No ponto 5 do capítulo III: “A ‘poetização do mundo’ pela arte de  Duchamp”,  apresentaremos a hipótese, a modo de ensaio e partindo do conceito de “mundialização” de Blumenberg, de um resultado de “poetização” do mundo por Duchamp, através de seu “processo criativo”.

No curso “Aventura e deriva na arte contemporânea” — ministrado por Cecília Cotrim –, vimos como Warburg realizou um trabalho de história da arte numa linha nada tradicional. Utilizou elementos artísticos de apresentação da mesma, realizando, enfim, uma história da arte, intimamente ligada à arte, ou ainda, entre uma e a outra. 

No capítulo IV: “A história da arte warburgiana como processo de poetização do mundo”, apresentaremos uma abordagem possível da obra de Warburg apontando algumas questões que deverão ser aprofundadas mais tarde, tentando enfatizar o aspecto em comum com Duchamp, que seria o de “poetização do mundo” através do método warburgino.

I. Warburg: do esquecimento à “sobrevivência”.

Durante muito tempo, o trabalho de Warburg ficou “exilado” não apenas da História da Arte, mas também da Arte e da História.

Georges Didi-Huberman[8] conta que o historiador de arte francês Henri Focillon (1881-1943) escreveu um livro usando o conceito de “sobrevivência” de Warburg, como conceito central do seu trabalho, sem fazer a menor referência a este. Já André Chastel trata dos movimentos de Baco e da arte florentina, também, sem fazer menção ao conceito warburgiano de pathosformel , antecedente fundamental para a compreensão dessas questões.

Por outro lado, o interesse dos estruturalistas pelos problemas teóricos se voltou para a Iconologia de Panofsky, da qual, em verdade, Warburg foi o verdadeiro fundador. Neste caso, Panofsky, como lembra Carlo Ginsburg[9], faz referência ao menos, a seu mestre, em trabalho em conjunto com Saxl, outro discípulo de Warburg.

Segundo Didi-Huberman, o esquecimento ou recalcamento do pai legítimo dessa disciplina levou a que, estudiosos como Pierre Francastel,  analisassem profundamente questões sobre a realidade figurativa entre pintura e espetáculos vivos, sem saber sequer que Warburg já o tinha feito em relação a Botticelli e, principalmente, aos Intermezzi florentinos de 1589. 

Didi-Huberman vê, ainda, no fato de não existirem publicações em inglês dos trabalhos de Warburg  — assim como no fato dos conceitos de Warburg serem vistos a miúdo, como “lugares-comuns” ou como “velharias”–,  uma reação à extrema movimentação com a qual  Warburg contribuira para a história da arte.

Depois de anos de total esquecimento e falta de reconhecimento, vem ocorrendo desde os anos 80 uma revalorização do trabalho de Aby Warburg, através de homenagens ao autor e publicações dos seus trabalhos e dos seus discípulos[10].

Em prefácio de 1984 a seu livro Clássico. Anticlássico, referindo-se ao débito de Panofsky para com Leonello Venturi, Argan  faz uma homenagem a Aby Warburg, como o “mestre” de Panofsky e realizador de uma “deslumbrante pesquisa[…] sobre a herança da Antigüidade na cultura clássica humanística italiana e alemã” [11].

Um dos trabalhos de atualização da obra de Warburg, foi a do historiador Carlo Ginsburg, que em 1986, considerou que é importante determo-nos na análise do método warburgiano de “utilização dos testemunhos figurativos como fontes históricas”[12]. Acompanhando a trajetória do historiador e comparando-a com a de seus discípulos Saxl, Panofsky e Gombrich, Carlo Ginsburg mostra a “atualidade” do mestre. O resgate de Warburg, realizado por Gombrich nos últimos anos após ter questionado profundamente seu método e fundamentos, encontra-se, segundo Ginsburg, na direção de vincular forma e função, abrindo desta maneira a possibilidade de “suscitar novos contatos com a sociologia e a antropologia”[13].

Já o trabalho de Phillipe-Alain Michaud resgata a questão do movimento, conceito este que, segundo Didi-Hubemann, é central na obra do historiador:

O pensamento de Warburg não acaba de pôr a história da arte em movimento. Em movimentos, dever-se-ia melhor escrever, tanto este pensamento tem aberto e multiplicado objetos de análise, vias de interpretação, exigências de método, jogos filosóficos [14].

De fato, Norbert Elias considera a articulação da historiografia moderna com as áreas de sociologia[15] e Pierre Vernant, com a antropologia[16] como sendo de fundamental importância para pensar as questões epistemológicas na constituição de uma historiografia contemporânea. Similarmente, Koselleck[17] considera também o conceito de movimento, elemento-chave na constituição de uma Historiografia dos tempos modernos [18].

Qual será a causa para a reabilitação da obra de Aby Warburg no campo da historiografia da arte, a partir dos anos 80? Vejamos, em primeiro lugar, que tipo de receptividade as questões hermenêuticas, fundamentais na obra de Warburg, possuíam no campo da historiografia, para depois, acompanhá-las no campo da arte e mais especificamente, na historiografia da arte.

IV. A história da arte warburgiana como processo de poetização do mundo

[No Renascimento] A conduta do indivíduo e a forma mais elevada de sociabilidade alçam-se à condição de uma deliberada e consciente obra de arte Burckhardt,(1855),1991[19].

O surgimento do trabalho de Warburg exige uma contextualização histórica[20]. As críticas dos românticos, com seu “conceito de crítica da arte”[21], pareceriam terem contribuído  para o salto de Warburg tornar-se possível.

Johann Winckelmann[22]  foi uma referência para Warburg como um modelo ao qual se contrapor. De fato, Winckelmann não poderia ser considerado um historiador moderno, como vinha sendo considerado[23] até o surgimento de Warburg, mas como um  neo-clássico.

Herder questionara o “sistema histórico” de Winckelmannn, por considerá-lo uma construção ideal, de acordo com um princípio metafísico. Como lembra Didi-Hubermann, não existe história da arte que não se fundamente em uma filosofia da história[24] e a de Winckelmann se apóia de um lado, num modelo naturalista e do outro, num modelo metafísico. O primeiro fundamento, calcado na ciência segundo os parâmetros iluministas, pensa o tempo histórico entre vida-morte ou então, evolutivamente: nascimento, desenvolvimento, decadência e fim[25]; o segundo fundamento é idealista e metafísico e segundo Didi-Hubermann, responde ao imperativo categórico de Kant e coloca a história a mercê da norma por ele estabelecida.  Em lugar de o historiador explicitar seu ideal — os gregos teriam que ser moderados em seus afetos — explicitando sua postura, Winckelmann dava a entender em sua narrativa, que os gregos ”eram” moderados. Por exemplo, analisando o Laocoonte  e seus filhos, ele diz:

 A estátua do Apolo é o ideal supremo entre todas as obras da Antigüidade. O artista baseou sua obra no ideal, e tomou apenas da matéria o que era estritamente necessário para realizar seu propósito e torná-lo visível[26].

Winckelmann procurava uma “essência da arte” que consistia num ideal de beleza relacionado com uma atitude que excluía a expressão das paixões, um meio termo [27], continente, para dizê-lo em termos aristotélicos[28]. De um lado, destaca a dor humana, do outro, as forças que se erigem contra a mesma, chegando a um ideal sublimado de beleza pela apresentação dos opostos em harmonia:

[..]e enquanto os sofrimentos enchem os músculos e põem tensos os nervos, o espírito imprime toda sua força a essa fronte levantada, e o peito se dilata sob uma angustiada respiração,   como querendo reprimir o torrente de sentimentos, conter a dor e encerrá-la dentro de si[29].

A visão de Winckelmann é próxima à visão trágica dos gregos: os homens a mercê dos deuses, que eram onipotentes e injustos. Era uma visão pessimista do mundo.

Em contraposição, Warburg constrói uma “história da arte cultural”, fundamentada nas idéias de Burkardt sobre história[30].  

A história cultural de Burkhardt foi fundamental para o desenvolvimento das teorias de Warburg. O historiador Peter Burke sintetiza na Introdução ao livro A cultura do renascimento na Itália de Burkhardt, as questões em que este inova: Em primeiro lugar, a arte e sua história eram vistos como assuntos “mundanos”; em segundo, se posicionava contra o positivismo e contra o hegelianismo; em terceiro lugar, a história é assistemática; por último, ele pretendia dar seu ponto de vista através de um “retrato” de uma época. Diz Peter Burke:

Em todo caso, sua postura estava tão distante do positivismo quanto de Hegel. Enquanto os positivistas viam a história como uma ciência e a atividade de historiador como uma coleta de “fatos” retirados de documentos e o relato ‘objetivo’, segundo eles, do que ‘efetivamente’ acontecera, Burkhardt via a história como uma arte. Para ele, esta era uma modalidade da literatura imaginativa, aparentada à poesia[31].

Burkhardt tinha uma visão holística da história, e por isso era tão importante para ele, entender para cada setor da cultura, a mentalidade e a visão de mundo, principalmente vistas em cortes transversais. Para ele, a cultura envolvia “o relacionamento social, as tecnologias, as artes, as literaturas, as ciências”.  Por outro lado pela idéia de “Renascimento da Antiguidade clássica” no “Renascimento” italiano, ele se sente herdeiro da própria antiguidade clássica. Outro conceito para o qual os estudos de Burkhardt são importantes é o de “modernização”.  

Por outro lado, Burkhardt concebe a história como uma poesia ou ensaio, e não apenas de forma neutra, objetiva, como quem vê a realidade de forma transparente através do instrumento “história”. Trata-se de uma idéia de história assistemática, que pretende dar um ponto de vista, como um retrato de época[32].

Warburg é sem dúvida um herdeiro direto dessa concepção da história como arte e, de história da arte inserida num todo cultural, com uma mentalidade de cada lugar, uma história da qual a retórica faz parte, herança que irá se traduzir em sua concepção da  história da arte entre a história da arte e a arte[33].

Pouco preocupado em utilizar fontes tradicionais para construir sua história da arte, e, contrário aos academicismos da história da arte tradicional, seu Atlas denominado Mnémosyne consiste numa montagem de pranchas, cada uma das quais, por sua vez, consiste num arranjo sobre pano preto, de imagens justapostas. As pranchas eram fotografadas para depois serem mostradas ao público. Michaud salienta que o objetivo da Iconologia dos Intervalos de Warburg seria “…uma iconologia que tem por objeto não a significação das figuras – esse é o sentido que lhe dera Panofsky –, mas as relações que essas figuras mantêm entre elas em um dispositivo visual autônomo, irredutível à ordem do discurso”[34].

Warburg não se limita à metodologia histórica de colheita de documentos testemunhais, provenientes de arquivos. A partir de uma seleção de documentos dos mais variados, que iam da “alta” cultura, como reproduções de obras de arte, à “baixa”, como mapas, fotos de rituais, de objetos indígenas, etc., qual um etnógrafo, ele recolhe elementos de variadas experiências vividas e/ou estudadas por ele do que ele entende por história da arte a partir da realidade. Nesta montagem, cada pequeno elemento possui um valor especial. Neste sentido, pode-se dizer que ele trabalha na linha proposta pela historiografia contemporânea, como já vimos, incorporando enfoques interdisciplinares vários, para assim multiplicar seus pontos de vista.

O que decide a escolha de Warburg das fotos de obras de arte e de objetos, são os traços comuns, nos objetos e nas expressões gestuais das pessoas.  Os traços comuns estariam falando, segundo a interpretação de Warburg, da existência de traços universais próprios a um homem universal primitivo que existiria em qualquer lugar e época.

Neste ponto, Warburg em lugar de acreditar numa história natural, com início, meio e fim está falando de uma historicidade assistemática, por intervalos, por camadas de tempo e de espaço, que estão comunicadas entre si por energias afetivas, psicológicas, sociais, antropológicas, lingüísticas, simbólicas, míticas. Por outro lado, o objetivo de sua pesquisa histórica não se direciona para uma essência idealizada de beleza, mais para uma realidade que chega a ser brutal, primitiva, sempre presente no ser humano. 

Os espaços, deixando à mostra partes do pano preto, funcionam esteticamente como as distâncias, os cortes  entre esses tempos e esses espaços. Entre esses espaços se transmitem ondas afetivas, que “ligam” uma figura à outra, ligação essa que depende dos significados atribuídos por cada espectador e, por conseguinte, cada espectador constrói sua história própria a partir da trama histórica de significados que traga consigo. 

Warburg[35] dá ao grupo escultural , de III a C,  Laocoonte e seus filhos, de um anônimo romano, uma interpretação mais movimentada e menos trágica que a de Winckelamnn, na medida em que a justapõe a imagens que portam um traço parecido, como por exemplo, uma “luta” com a serpente, em uma outra cultura ou época; por exemplo, o retrato de um indígena americano da tribu hopi, realizando o ritual da serpente, que não é sacrificial. Na cena, a serpente, em lugar de inimiga mortal e poderosa, se torna um objeto nas mãos do homem, para com ele enfeitar-se, além de, nutrir-se de seus fluídos – mesmo que de forma ficcional.

Warburg nos coloca uma história da arte frente aos olhos que nos faz viajar junto com ele, nos põe em contato com o outro, com o estranho de outra cultura, de outro saber, e também com o outro de outros saberes diferentes, com as contribuições de sua época. Nesse sentido estamos frente a uma história que La Capra considera dialógica, pelo diálogo que estabelece com o outro, com o estranho. Sua história da arte é viva, é crítica e é otimista. Mostra-nos o que de outras culturas sobrevive na nossa,  fazendo com que ocorram laços afetivos entre essas culturas coloca-nos frente a uma história da arte “sobrevivente”, “viva”, otimista, do homem sendo o senhor do mundo, uma leitura mundializada[36], vencendo a serpente, dominando o mundo animal.

Warburg justapõe na mesma prancha ainda, uma reprodução de 1599, de Roma, onde Laocoonte aparece tanto como um selvagem quanto como um sacerdote de Apolo. É da época que ele chama Nachleben der Antike, (sobrevivência da Antigüidade), do Renascimento. Completa a prancha, com uma Caricatura de Laocoonte também do Renascimento, mostrando Laocoonte e os filhos como símios, tão ferozes quanto os animais, quando se vêem atacados. Poderia ser, também, segundo Didi-Hubermann, uma referência à idéia existente de ars simia naturae  (a arte imita a natureza).

Essa montagem de imagens de Warburg se afasta do lado sublime idealizado da dor de Laocoonte interpretada por Winckelmann, conduzindo-nos  Warburg para duas novas vertentes. Por um lado, nos confronta com o mundo cultural e com a arbitrariedade própria do mundo dos símbolos; por outro, nos mostra o lado pulsional, não-histórico, atemporal e sua qualidade de necessidade ou não arbitrariedade do mundo natural[37]. Enquanto Winckelmann fazia uma leitura apolínea, equilibrada de dor e aceitação frente à potência total dos deuses, a leitura de Warburg é dionisíaca, derivada da sua familiaridade com as teorias de  Nietzsche: “É concebido um estado supremo de afirmação da existência, do qual nem mesmo a suprema dor pode ser excluída: o estado trágico-dionisíaco” [38].

Esse primeiro lado relacionado ao mundo cultural, que articula o simbólico, o mítico e a arte tem sua origem no contexto cultural de Warburg um ambiente neokantiano, dos quais um dos representantes é Ernst Cassirer, com quem mantinha uma troca intelectual permanente, principalmente na área da Linguagem, Mitos e Símbolos, que se refletirá no trabalho de ambos.

Ernst Cassirer (1874-1945) pertenceu à Escola neokantiana de Marburg, tendo mantido ligações também com a de Baden [39]. Entre outros livros, Cassirer escreveu Linguagem e MitoO problema do conhecimento na Filosofia e Ciência dos Tempos Modernos, Liberdade e forma, e entre 1923 e 1929, sua obra principal Filosofia das Formas Simbólicas.

Warburg faz uma releitura em que a imagem se vê atravessada por uma série de energias, representadas pela cobra, o raio, que servem trazer uma outra energia que é a chuva. Uma destrói a outra, uma dá lugar à outra, leitura esta que responde a todas as energias físicas e culturais com as que Warburg lidava na época[40].

De fato, o Movimento Neokantiano renovou o pensamento kantiano e foi constituído por físicos e fisiólogos, como  Herman Helmhotz, até filósofos e historiadores como Kuno Fischer e Albert Lange, entre outros. Existiram também grupos menores de neokantismo, entre os quais se encontram as Escolas de Marburg, liderada por Hermann Cohen e Paul Nartorp, e de Baden,  cujos líderes Wilhelm Windelband e Heinrich Rickert diferenciaram as ciências que operam com leis, procedendo de forma generalizadora, das ciências idiográficas, que procedem de forma individualizadora.

As duas Escolas utilizam o método transcendental de pesquisa das condições apriorísticas do conhecimento moral, artístico ou científico[41] . Cassirer tenta distinguir os modos próprios de configuração e de “enformação” do mito e à linguagem, do modo próprio da ciência, descobrindo nas suas formas “o critério de verdade e de significação intrínseca”, lançando assim, segundo Anatol Rosenfeld, “as bases de uma antropologia filosófica e filosofia da cultura” [42].

Cassirer retoma, por sua vez, “Ensaio para uma teoria da concepção religiosa”, de 1896, que se encontra em Os Nomes Divinosde Usener. Ao estudar os deuses lituanos, por exemplo, Usener compreendeu melhor a cultura greco-romana[43].  Cassirer se perguntava o quê levaria à linguagem a “selecionar certas configurações nas séries sempre fluentes e uniformes de impressões que ferem nossos sentidos ou brotam dos processos espontâneos da mente, fazendo com que se detenha diante delas e lhes confira uma ‘significação’ particular” [44].

 Entrando, segundo Cassirer, no terreno da fenomenologia do espírito, Usener se propõe pesquisar o momento de surgimento dos nomes e conceitos dos deuses, isto é, estudar a questão de uma lei geral da formação de conceitos, a partir de uma consciência lingüística e mítica. Usener não limitava seu estudo à área histórico-filosófico-religiosa, mas entendia que se tratava de um problema de ordem epistemológico [45].

Por outro lado, na construção da iconologia de Warburg, o elemento pulsional, afetivo, pathos, foi da maior importância, também construído a partir de influências que Warburg sofreu de Burkhardt, de Nietzsche[46], e Freud[47] e a Psicanálise em geral, além de Darwin de A expressão dos animais nos homens e nos animais [48] .

Por outro lado, se a história da arte para Winckelmann estava orientada para a análise da sombra de um objeto perdido no passado que causava nostalgia[49], a história da arte com Warburg nos obriga a fazer uma leitura viva, atualizada do que está acontecendo, e que olha para um horizonte futuro, sem nostalgias. Trata-se de uma história da arte em contato com os saberes de sua época, e de outras épocas, além de estar em contato com outras civilizações.

A História da Arte sem palavras de Warburg, segundo Bing, tem como objetivo analisar a:

[…] função da criação figurativa na vida da civilização [e a] relação variável que existe entre expressão figurativa e linguagem falada. Todos os outros temas que são considerados característicos das suas pesquisas, seu interesse pelo conteúdo das figurações, sua atenção pela sobrevivência da Antiguidade, eram não tanto objetivos propriamente ditos, mas meios para atingir aquela meta[50].

O trabalho de Aby Warburg, assim como o de Duchamp, tanto trabalha com imagens, quanto com enunciados verbais, verificando-se aqui, para começar, a idéia romântica de Gesamtkunstwerk: Dizia Tieck: “que se pense através de sons e se faça música através de palavras e idéias…”; A. W.Schlegel escreveu sobre a aproximação entre artes, forma esta contrária à do classicismo: chegando ao ponto de, atribuir cores precisas às vogais [51].   Phillipe-Alain Michaud faz uma releitura de a obra de Warburg através do conceito “imagem-movimento” que Deleuze [52]

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *