Apresentado nas Jornadas da Escola Brasileira de Psicanálise. Outubro de 2007. Publicado nos Anais.
Est–Ética da hipermodernidade
Análise do “Homem-Espelho”: Viagem ao antes da Imagem Rainha.
Gloria Georgina Seddon[1]
I. Imagem indo para o espaço
Dentro de um macacão feito de cacos de espelho que lhe cobre dos pés à cabeça e lembrando-nos Neil Armstrong em sua chegada à lua, o artista brasileiro Daniel Toledo caminha com dificuldade pela Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no evento Posição 2004. Ao refletir-se no “Homem-Espelho”, a imagem de nossos corpos vai para o espaço, explodindo em mil pedaços.
O que a psicanálise teria a dizer sobre o fazer artístico dessa “ação poética” [2] e o que esse fazer artístico teria a dizer para a psicanálise?
Muito além do que o artista se propôs a passar, que foi basicamente uma crítica ao sistema de arte, nessa obra que foi comprada por Gilberto Chateaubriand, provocou grande impacto no público. Esse muito além, é o que Duchamp denominou “coeficiente artístico”[3].
II. De Contemplar a obra…
Para entender o porquê utilizar o instrumental teórico-conceitual relativo à produção artística que o último ensino de Lacan nos oferece é necessário diferenciá-lo do que nos oferece a concepção freudiana e ainda ,a concepção lacaniana dos anos 60.
A “sublimação” segundo Freud é o “desvio das forças pulsionais para objetivos novos”[4], para a criação de uma obra de arte; por exemplo, os aspectos homossexuais recalcados de Leonardo da Vinci, tinham se transformado em uma forte tendência à pesquisa e um “intenso desejo visual”[5].
Freud interpretava a obra de arte através da análise da biografia do artista, como era comum na época[6]. Respaldado no conceito de imitatio, que era a interpretação que Santo Tomás tinha efetuado da mimesis aristotélica;[7], qualquer elemento que na representação –obra–, não reproduzisse a realidade objetiva –referente–, e/ou que não respondesse ainda ao titulo da obra –discurso em palavras que dava veracidade à representação –, era tomada para psicanalisar o artista.
A “aura” das obras de arte clássica e renascentista e que na Modernidade desaparece, segundo Benjamin[8] desaparecerá, talvez seja produto desse tipo de concepção de sublimação.
A obra de arte, assim como a trama do sonho é, segundo Freud, uma trama pictórica interpretável através de um percurso contrário ao realizado pela sublimação. Assim como o analista, não teria como aceder à Coisa (das Ding)[9], já que das Ding não era analisável, o espectador encontrar-se-ia barrado de um gozo maior, ficando apenas “olhando” para ela a certa distância, fruindo. Na abordagem kantiana, percebe-se a mesma linha de raciocínio. Para Kant o prazer estético, diferentemente do prazer sensual não implica nem em conhecer o objeto, nem em consumi-lo para satisfazer suas necessidades vitais, mas numa percepção interna produto da imaginação, que leva a uma contemplação[10]. Tanto o artista quanto o espectador ficam com um prazer sublimado, ou como diz Kant, imaginado.
Devido a uma concepção teórica defasada da produção de sua época, Freud desistiu de entendê-la, já que, segundo ele, tudo agora se passaria a nível consciente e então não havia nada que a psicanálise pudesse aportar[11].
III. …para a produção da obra a partir do nada (Ex-nihilo– das Ding),
Já no início do século XIX, Hegel anunciara uma crise no sistema da arte, da qual responsabilizou os artistas pelo deslocamento que efetuaram do Espírito Absoluto (Deus), para sua própria subjetividade[12]. Hegel afirmou: “a arte está morta”.
Magritte questionou a relação de imitatio em “A traição da obra”, onde nega em palavras, o que coloca na imagem: “isto não é um cachimbo”[13] Em 1917, Duchamp apresenta um mictório de banheiro público como obra de arte a uma exposição da qual era júri, denominando-a A Fonte e escondendo sua verdadeira autoria sob o codinome de R.Mutt.
Imbuído do espírito das vanguardas artísticas de Paris que vinham valorizando, o aspecto radical do instinto de morte freudiano, Lacan, em seu “retorno a Freud”, resgata a vertente criativa desse instinto, proposto por Freud em “Além do princípio do prazer”, –vertente esta abandonada pelos pós-freudianos[14]. Em 1938, Lacan atribui o surgimento da Psicanálise a uma crise psicológica, decorrente de um declínio da imago paterna na família patriarcal — instituição à qual Freud atribuíra o grande desenvolvimento psíquico da civilização–, considerando que o avesso da mesma é o princípio feminino[15].
Em O Seminário de 1959-60, A Ética da Psicanálise, Lacan apresenta as idéias de produção da obra de arte, ex-nihilo e a de sublimação, como processo que eleva o objeto “à dignidade de Coisa”[16]. Mas enquanto a Coisa (das Ding), freudiana, enraizada na filosofia de Kant era não-analisável, o conceito de a Coisa (das Ding) em Lacan, com suas raízes na filosofia de Heidegger, é um vazio e ainda, é o ser que daria a forma da produção[17].
IV. …ou do vazio ao “pôr-se-em-obra a verdade do ente”…
Heidegger no seu trabalho A Origem da Obra de Arte, considera que a essência da arte é “o pôr – se – em – obra da verdade” do ente[18]..
Se bem Lacan retoma o das Ding heideggeriano, e a produção ex-nihilo, ele se afasta da idéia de “verdade de um ente”. A produção artística entendida como fluxo duas cadeias de significantes e de significados que mantêm entre si correspondências frouxas, que permitem uma polissemia, –lacaniana–, mais do que uma interpretação dos desejos inconscientes, exige decifrar o enigma, do qual podem sair meias verdades.
Ao colocar-se a si mesmo numa galeria de arte em situação de risco [19], Beuys se apresenta como resto, morto, como não-valor, como objeto a [20], para logo depois renascer, criar novos valores[21], novas mitologias[22]. Dramatizando um ciclo dialético hegeliano ininterrupto, esse processo, lembra-nos as reviravoltas ou diferentes momentos dialéticos pelos que passa o analisando num processo de análise, e que ele chama de “retificação subjetiva”. Jaques-Alain Miller, em Comentário a O Seminário. O Sinthoma assinala a origem desse conceito: “Henry Miller testemunhou o efeito de “retificação subjetiva”, obtido a partir da leitura da obra blavatskiana”[23] . A Estética que Beuys propõe é a estética de retomar as próprias raízes, construindo uma mitologia própria através da arte, já que, segundo Beuys, todo mundo é artista.
V. do “saber-fazer-com-o-real”… para o “pôr-se-em-obra da verdade do ente”.
O “Homem Espelho” incluiu o seu corpo do artista como obra, “pôs-se-em-obra”, tal qual fez Beuys, mas em situação de risco virtual, já que, elidindo-se, colocou-se na posição de analista, de resto, de objeto a, no final da análise.
O corpo do artista elidiu-se, abandonando seu narcisismo e passando a reunir em seu corpo-cacos-de-espelho, um somatório misturado das imagens fragmentadas refletidas dos espectadores que passam a seu lado, e que vão tornando-se assim, partícipes[24]. O “Homem-Espelho” apresenta os múltiples olhares do ser humano que existem na contemporaneidade ou na ultra-modernidade.
Mesmo o artista não conhecendo essa construção teórica lacaniana, existiu esse saber-fazer-com-o-real[25] com o que o artista fala de um saber inconsciente[26] desse momento de sua constituição.
Daniel Toledo realiza através de sua ação poética, uma operação invertida da que fez Duchamp através da sublimação. O fato do corpo do espectador estar indo para o espaço, coloca o artista e, por identificação, o espectador, numa posição de pôr-se-em-obra- da-verdade, numa posição do infans na fase do “Corpo Fragmentado”, anterior à organização do corpo, que se dá na “Fase do Espelho através da Imagem Rainha”[27]. Em lugar da mirada inicial aparece, no espectador, um olhar cru e a pulsão escopofílica de querer entender e de querer saber-fazer-com-o-real, própria da solidão e da angústia com que se defronta o artista. Agora é ele, o espectador que se encontra na posição de objeto a, causa de desejo.
Retrotraido a um passado mítico e fundador, a operação lembra a travessia da fantasia, passagem que se dá num final de análise muito bem sucedido[28]. Como diz Miller: Em lugar de “lá, onde o isso estava, o eu deve advir”, se dá “então, eu sou isso, um resto”[29].
É a este tipo de operações realizadas no campo artístico da ultra modernidade, que nos parece referir-se Lacan, com o conceito de “saber-fazer-com-o-real”[30] no campo da arte.
Em trabalho anterior, concluímos que a arte contemporânea brasileira, desde Hélio Oiticica e Lígia Clark, vem realizando uma operação de aproximação ao real, análoga ao processo de análise[31]. Entendemos que essa tendência vem se aprofundando tanto nas artes, como em outros campos da cultura[32].
Marie-Hélène Brousse lembra que em 2006, “Miller nos aportou uma perspectiva revolucionária de esta questão. Ele demonstrou que, em efeito, o discurso da Modernidade hoje responde à estrutura do discurso analítico e não mais ao discurso do Mestre” e que, “em lugar de lamentar este fato, é necessário entender que a própria psicanálise tem colaborado para a ‘evaporização do pai’”[33].
Assim, concluímos que na arte contemporânea se produz um discurso análogo ao do analista. Tal como o psicanalista, o artista vem tendo forte responsabilidade nesse “prescindir do Nome-do-Pai, com a condição de servirmos dele”[34]. Poder-se-ia falar na arte brasileira da “hipermodernidade”, de uma Estética do Real, ou ainda, de uma Est-Ética[35] que aponta não mais à representação de um mundo objetivo, mas a apresentação de operações ético-estéticas que põem-em-obra-a-verdade-do ser, a partir de um saber-fazer-com-o-real.
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[1] Gloria Georgina Seddon é psicanalista, artista visual e historiadora da arte, especialista em História da Arte e da Arquitetura no Brasil. PUC/RJ, doutora e mestre em Psicologia Clínica pela PUC/RJ.
[2] “Ação poética” é como o artista Joseph Beuys denominou suas performances com objetivo de mostrar para o público, que também era artista. Ver Seddon, G.G. :A lógica poética de Joseph Beuys ou como reencontrar o própio destino através da arte. In: IV Encontro Larino-Americano dos Estados Gerais da Psicanálise, 2005, São Paulo. www.estados gerais da psicanálise. IV Encontro Latino-Americano, 2005.
[3] Esse termo Duchamp o apresenta no seu trabalho: Duchamp, Marcel- “O ato criador”in Gregory Battcock- A Nova Arte- São Paulo, Ed. Perspectiva, 2002.
[4] Freud, Sigmund (1905). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In J. Strachey (Ed.), Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Imago, 1977. v. VII, pp. 13-290.p.:182.
[5] Freud, S. (1910)–“Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância”. . In J. Strachey (Ed.), Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Imago, 1977. v. Xi,1970:.pg.88
[6] Método biográfico de Saint Beuve.Ver ao respeito: “Origem e desenvolvimento dos modernos estudos de história e crítica literárias” In: Aguiar e Silva, Vítor Manuel. Teoria da Literatura, Livraria Almedina. Coimbra, 1982., página
[7] Brum, T. Apontamento do Curso de Filosofia ministrado para o Curso de História da Arte e da Arquitetura do Brasil, PUC/RJ. 2003-2004.
[8] Benjamin, W. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”In: José Lino Grünewald, A idéia do cinema, Civilização Brasileira, 1969, Rio de Janeira.
[9] Freud, Sigmund (1895). Projeto para uma Psicologia Científica (Partes I, II e III). In J. Strachey (Ed.), Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Imago, 1977. v. I, pp.395-517.p
[10] Kant, Imanuel- Crítica da Faculdade do Juízo. Forense Universitária, Rio de Janeiro, 2002; .Brum, Thomas-Curso de Estética, ditado no Curso de História da Arte e da Arquitetura no Brasil, PUC/RJ. 2003.
[11] Rivera, 2002. Arte e Psicanálise. Jorge Zahar Editor, Psicanálise Passo a passo, Rio de Janeiro, 2005.
[12] Hegel, G.W.F.- Cursos de Estética, Vol I, II, III. EDUSP, São Paulo, 2001;2000;2002; Brum, J.T. Curso de Estética II. Curso de Especialização da História da Arte e da Arquitetura no Brasil, PUC/RJ, Rio de Janeiro, 2004.
[13] Foucault, 1988.Isto não é um cachimbo. Oficina das Artes/Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1988.
[14] Seddon. A feminização da psicanálise. Análise dos deslocamentos na produção da feminilidade, Tese de Doutoramento, PUC/RJ, Rio de Janeiro, 1998.1998.
[15] Lacan,J. (1938)- Os Complexos Familiares na formação do indivíduo. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro,1987::60-61.
[16] Lacan, J.- (1959-60) O Seminário. Livro 7.de, A Ética da Psicanálise . Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1988.
[17] Heidegger, M. (1954).-“La chose” In Essais et Conférences/Lês Essais/ Trad. André Préau. Paris, Gallimard, 1996: 198-203.
[18] Heidegger, M. A origem da obra de arte. Edições 70, Lisboa, 1977: 30.
[19],Beuys fica junto a um coiote numa galeria de arte novaiorkina, durante cinco dias seguidos, na ação poética “ I love América and América loves me”.Ver Seddon, G.G. :A lógica poética de Joseph Beuys ou como reencontrar o própio destino através da arte. In: IV Encontro Latino-Americano dos Estados Gerais da Psicanálise, 2005, São Paulo In :
https://. www.estados gerais da psicanálise. IV Encontro Latino-Americano., 2005.html.
[20] Lacan, J.(1962-3)- O Seminário. A Angústia, Livro 10. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2005.
[21] Heidegger, M. (1954).-“Bâtir habiter penser” In Essais et Conférences/Lês Essais/ Trad. André Préau. Paris, Gallimard, 1996
[22] Ver: sobre Heidegger: Heidegger, M. (1954).-“Das Ding” In Essais et Conférences/Lês Essais/ Trad. André Préau. Paris, Gallimard, 1996. Sobre Schelling: Brum, J.T.- “O primado do artista sobre o filósofo” In: https://jbonline.terra.com.br/papel/cadermos/idéias/2001/10/12 joride20011011012016.html.
[23] Lacan,J. (1975-6)-O Seminário. Livro 23. O Sinthoma. Zahar, Rio de Janeiro, 2007: 228).
[24] Ver imagem anexa.
[25] [25] Lacan, J.-O Seminário. Livro 23. O Sinthoma ( 1975-76), Zahar, Rio de Janeiro, 2007.
[26] Duchamp, M.- idem.
[27] Lacan, J. “El estádio del espejo como formador de la función del yo [je] tal como se nos revela em la experiência psicanalítica”In : Escritos 1. Siglo XXI Editores, Buenos Aires, 1975.
[28] Seddon, G.G. – A feminização da psicanálise. Análise dos deslocamentos na produção da feminilidade, Tese de Doutoramento, PUC/RJ, Rio de Janeiro, 1998.
[29] Miller, J.A.-Donc I. Paris: Université de Paris VIII, 1993.
[30] Lacan, J.-O Seminário. Livro 23. O Sinthoma ( 1975-76), Zahar, Rio de Janeiro, 2007: 59-87.
[31] Seddon, G.G. Arte para a Subversão das Subjetividades. A reviravolta do século XXI nas artes visuais cariocas. Monografia de Especialização do Curso História da Arte e da Arquitetura no Brasil, PUC/RJ. , Rio de Janeiro, 2005.
[32] Viemos desenvolvendo trabalhos nesta linha desde 1986.
[33] Marie-Hélène- “Fragmentation du père et ultramodernité” Cuarto n. 86: Línvention sinthomatique.,École de la Cause freudienne, 2007.
[34] Lacan, J.-O Seminário. Livro 23. O Sinthoma ( 1975-76), Zahar, Rio de Janeiro, 2007: 132.
[35] Viemos desenvolvendo trabalhos na linha do que chamamos “arte do real”, e da est-ética, desde 2005:
Diálogos entre Arte e Psicanálise.Arte Contemporânea Brasileira e a Subversão das Subjetividades. In: IV Encontro Latino-Americano dos Estados gerais da Psicanálise, 2005, São Paulo. www.estadosgerais.org/encontro/IV/PT/trabalhos/.php – 5k 2005.
Apresentado nas Jornadas da Escola Brasileira de Psicanálise. Outubro de 2007. Publicado nos Anais.
Est–Ética da hipermodernidade
Análise do “Homem-Espelho”: Viagem ao antes da Imagem Rainha.
Gloria Georgina Seddon[1]
I. Imagem indo para o espaço
Dentro de um macacão feito de cacos de espelho que lhe cobre dos pés à cabeça e lembrando-nos Neil Armstrong em sua chegada à lua, o artista brasileiro Daniel Toledo caminha com dificuldade pela Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no evento Posição 2004. Ao refletir-se no “Homem-Espelho”, a imagem de nossos corpos vai para o espaço, explodindo em mil pedaços.
O que a psicanálise teria a dizer sobre o fazer artístico dessa “ação poética” [2] e o que esse fazer artístico teria a dizer para a psicanálise?
Muito além do que o artista se propôs a passar, que foi basicamente uma crítica ao sistema de arte, nessa obra que foi comprada por Gilberto Chateaubriand, provocou grande impacto no público. Esse muito além, é o que Duchamp denominou “coeficiente artístico”[3].
II. De Contemplar a obra…
Para entender o porquê utilizar o instrumental teórico-conceitual relativo à produção artística que o último ensino de Lacan nos oferece é necessário diferenciá-lo do que nos oferece a concepção freudiana e ainda ,a concepção lacaniana dos anos 60.
A “sublimação” segundo Freud é o “desvio das forças pulsionais para objetivos novos”[4], para a criação de uma obra de arte; por exemplo, os aspectos homossexuais recalcados de Leonardo da Vinci, tinham se transformado em uma forte tendência à pesquisa e um “intenso desejo visual”[5].
Freud interpretava a obra de arte através da análise da biografia do artista, como era comum na época[6]. Respaldado no conceito de imitatio, que era a interpretação que Santo Tomás tinha efetuado da mimesis aristotélica;[7], qualquer elemento que na representação –obra–, não reproduzisse a realidade objetiva –referente–, e/ou que não respondesse ainda ao titulo da obra –discurso em palavras que dava veracidade à representação –, era tomada para psicanalisar o artista.
A “aura” das obras de arte clássica e renascentista e que na Modernidade desaparece, segundo Benjamin[8] desaparecerá, talvez seja produto desse tipo de concepção de sublimação.
A obra de arte, assim como a trama do sonho é, segundo Freud, uma trama pictórica interpretável através de um percurso contrário ao realizado pela sublimação. Assim como o analista, não teria como aceder à Coisa (das Ding)[9], já que das Ding não era analisável, o espectador encontrar-se-ia barrado de um gozo maior, ficando apenas “olhando” para ela a certa distância, fruindo. Na abordagem kantiana, percebe-se a mesma linha de raciocínio. Para Kant o prazer estético, diferentemente do prazer sensual não implica nem em conhecer o objeto, nem em consumi-lo para satisfazer suas necessidades vitais, mas numa percepção interna produto da imaginação, que leva a uma contemplação[10]. Tanto o artista quanto o espectador ficam com um prazer sublimado, ou como diz Kant, imaginado.
Devido a uma concepção teórica defasada da produção de sua época, Freud desistiu de entendê-la, já que, segundo ele, tudo agora se passaria a nível consciente e então não havia nada que a psicanálise pudesse aportar[11].
III. …para a produção da obra a partir do nada (Ex-nihilo– das Ding),
Já no início do século XIX, Hegel anunciara uma crise no sistema da arte, da qual responsabilizou os artistas pelo deslocamento que efetuaram do Espírito Absoluto (Deus), para sua própria subjetividade[12]. Hegel afirmou: “a arte está morta”.
Magritte questionou a relação de imitatio em “A traição da obra”, onde nega em palavras, o que coloca na imagem: “isto não é um cachimbo”[13] Em 1917, Duchamp apresenta um mictório de banheiro público como obra de arte a uma exposição da qual era júri, denominando-a A Fonte e escondendo sua verdadeira autoria sob o codinome de R.Mutt.
Imbuído do espírito das vanguardas artísticas de Paris que vinham valorizando, o aspecto radical do instinto de morte freudiano, Lacan, em seu “retorno a Freud”, resgata a vertente criativa desse instinto, proposto por Freud em “Além do princípio do prazer”, –vertente esta abandonada pelos pós-freudianos[14]. Em 1938, Lacan atribui o surgimento da Psicanálise a uma crise psicológica, decorrente de um declínio da imago paterna na família patriarcal — instituição à qual Freud atribuíra o grande desenvolvimento psíquico da civilização–, considerando que o avesso da mesma é o princípio feminino[15].
Em O Seminário de 1959-60, A Ética da Psicanálise, Lacan apresenta as idéias de produção da obra de arte, ex-nihilo e a de sublimação, como processo que eleva o objeto “à dignidade de Coisa”[16]. Mas enquanto a Coisa (das Ding), freudiana, enraizada na filosofia de Kant era não-analisável, o conceito de a Coisa (das Ding) em Lacan, com suas raízes na filosofia de Heidegger, é um vazio e ainda, é o ser que daria a forma da produção[17].
IV. …ou do vazio ao “pôr-se-em-obra a verdade do ente”…
Heidegger no seu trabalho A Origem da Obra de Arte, considera que a essência da arte é “o pôr – se – em – obra da verdade” do ente